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NOTA TÉCNICA CONTRÁRIA AO PROJETO DE LEI Nº 4.337/2023

Referência: Projeto de Lei nº 4.337/2023 (Senado Federal) – Altera dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992) e da Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985), para dispor sobre a omissão do membro do Ministério Público em propor acordo de não persecução civil ou ajustamento de conduta.

 

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES E DAS PROCURADORAS DO TRABALHO – ANPT, atenta às suas finalidades estatutárias[1], buscando contribuir com o debate sobre o Projeto de Lei (PL) em referência, vem, respeitosamente, a partir da interpretação sistemática do embasamento normativo constitucional e infraconstitucional em vigor, expor as razões de sua contrariedade.

 

O PL, para alegadamente assegurar maior controle interno dos atos do Ministério Público brasileiro, propõe a modificação do § 6º do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública, nestes termos ora editado:

 

  • 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.

 

Pelo art. 2º do PL, o dispositivo seria desdobrado e, como resultado do acolhimento de emendas posteriores, receberia a seguinte redação:

 

“§ 6º-A O compromisso de ajustamento de conduta que preveja obrigações de pagar valores ou de entregar coisas fica condicionado à homologação do arquivamento do procedimento investigativo pelo Conselho Superior ou Câmara de Coordenação e Revisão, na forma da legislação do respectivo Ministério Público, ou por órgão superior hierárquico no caso de demais legitimados.

 

  • 6º-B No caso de omissão ou recusa do membro do Ministério Público acerca da proposta, análise e celebração de ajuste de conduta, seja na fase extrajudicial ou judicial, o investigado pode requerer a remessa dos autos ao Conselho Superior ou Câmara de Coordenação e Revisão, na forma da legislação de cada Ministério Público.

 

  • 6º-C Na revisão prevista no § 6º-B pode o órgão revisor reconhecer a omissão, manter a recusa ou, se entender requisitos para a formulação do ajustamento de conduta, remeter os autos para outro membro do Ministério Público cumprir a determinação superior”. (elementos de realce acrescidos)

 

O Excelentíssimo Senhor Relator, Senador Izalci Lucas, emitiu, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, parecer conclusivo pela constitucionalidade, regimentalidade, juridicidade e boa técnica legislativa, bem como, quanto ao mérito, pela aprovação.

 

Não se discute, evidentemente, que os atos do Ministério Público, como os administrativos em geral, devem estar – e efetivamente estão – sujeitos a controle interno e externo.

 

Nada obstante, o PL notoriamente está eivado de inconstitucionalidade formal e material, por vício de iniciativa e por afronta direta aos parágrafos 1º, 2º e 5º do art. 127 da Constituição da República:

 

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

 

  • 1º São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

 

  • 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento.

 

(…)

 

  • Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, (…).

 

Com efeito, o arcabouço normativo do Ministério Público, delineado pela Lei Complementar nº 75/1993 e pela Lei nº 8.625/1993, já estabelece as dinâmicas de revisão das investigações civis, fixando diretrizes para a regulamentação da matéria e impondo, consequentemente, coerência jurídica.

Registre-se, por exemplo, que a alínea “d” do inciso IX do art. 10 da Lei n⁰ 8.625/1993, a Lei Orgânica do Ministério Público, afirma que “compete ao Procurador-Geral de Justiça: (...) designar membros do Ministério Público para: (...) oferecer denúncia ou propor ação civil pública nas hipóteses de não confirmação de arquivamento de inquérito policial ou civil, bem como de quaisquer peças de informações.” (itálico e negrito acrescidos).

 

O caput do art. 9º da Lei da Ação Civil Pública, por sua vez, prevê que, “se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas as diligências, se convencer da inexistência de fundamento para a propositura da ação civil, promoverá o arquivamento dos autos do inquérito civil ou das peças informativas, fazendo-o fundamentadamente”. O § 4º do mesmo artigo acrescenta que, “deixando o Conselho Superior de homologar a promoção de arquivamento, designará, desde logo, outro órgão do Ministério Público para o ajuizamento da ação.(idem).

 

As normas que regem as atribuições do Ministério Público e o respectivo modo de exercício estabelecem, destarte, que o controle revisional somente ocorrerá, quando, após a finalização da instrução, o promotor natural, convencendo-se de que não é cabível o ajuizamento da ação civil pública ou a tomada do termo de ajustamento de conduta, promove o arquivamento da investigação. O órgão revisor, divergindo do arquivamento, estará então legalmente autorizado apenas a determinar a distribuição dos autos a outro membro.

 

Sob pena de inadmissível afronta direta aos princípios constitucionais do promotor natural e da independência funcional, a sobredita legislação não admite, no curso da investigação, a ingerência abrupta do órgão revisor na atuação de qualquer membro oficiante e, portanto, o impede de ditar o modo de condução do inquérito civil, de impor a celebração do termo de ajustamento de conduta ou de se imiscuir no conteúdo deste.

Diversamente do afirmado na justificativa do PL e no parecer do Excelentíssimo Senhor Relator, data venia, considerada a atual e suficiente disciplina legal, não há qualquer lacuna a ser suprida, circunstância que torna ainda mais evidente o já apontado vício de iniciativa, resultante da preterição do § 5º do art. 127 da Constituição da República, anteriormente reproduzido.    

 

O PL, afastando-se de sólidas lições doutrinárias e da jurisprudência consolidada[2], ignora, ademais, que a tomada do termo de ajustamento de conduta representa, nos procedimentos civis e trabalhistas, uma faculdade do Ministério Público – não, um direito subjetivo do investigado, juridicamente tutelável.

 

Deve-se ressaltar, outrossim, que há casos de gravíssimas afrontas a direitos humanos – por exemplo, em situações de riscos iminentes de acidentes de trabalho ou de exploração de trabalho infantil ou análogo à escravidão –, em que o membro do Ministério Público do Trabalho, como promotor natural e no gozo da sua independência funcional, pode reputar inadequado ou mesmo inviável o oferecimento prévio do termo de ajustamento de conduta, não sendo minimamente razoável exigir que se aguarde qualquer decisão do órgão com competência revisora, que implique a postergação de medidas cautelares ou emergenciais, administrativas ou judiciais.

 

PELO EXPOSTO, a ANPT, convicta de que o Projeto de Lei nº  4.337/2023 viola frontalmente os parágrafos 1º, 2º e 5º do art. 127 da Constituição da República, assim como os princípios constitucionais da independência funcional e do promotor natural, com enorme potencial de comprometer a eficácia social e a resolutividade da atuação do Ministério Público brasileiro, manifesta-se pela integral rejeição.  

 

Brasília, 20 de novembro de 2023.

                                                                                        

JOSÉ ANTONIO VIEIRA DE FREITAS FILHO/LYDIANE MACHADO E SILVA

Presidente/Vice-Presidenta

 

ANTONIO DE OLIVEIRA LIMA

Diretor de Assuntos Legislativos

 

CAROLINA PEREIRA MERCANTE

Diretora de Assuntos Jurídicos

 

[1] “Art. 1º A Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho – ANPT, pessoa jurídica de Direito Privado sem fins lucrativos, fundada em 07 de fevereiro de 1979, com sede e foro no Distrito Federal, congrega os membros e as membras do Ministério Público do Trabalho. (...) Art. 2º São finalidades da Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho: (...) III – defender os princípios e garantias do Ministério Público, sua independência e autonomias, funcional e administrativa, bem como os predicamentos, as funções e os meios previstos para o exercício destas; IV – concorrer para o fortalecimento do Ministério Público; (...) VII – colaborar com os Poderes Públicos no desenvolvimento da justiça, na defesa dos interesses sociais e no estudo e solução de problemas que se relacionem com o Ministério Público, seus membros e suas membras;”. 

 

[2] “Tanto o art. 5º., § 6º., da LACP quanto o art. 211 do ECA dispõem que os legitimados para a propositura da ação civil pública “poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais”. Do mesmo modo que o MP não pode obrigar qualquer pessoa física ou jurídica a assinar termo de cessação de conduta, o Parquet também não é obrigado a aceitar a proposta de ajustamento formulada pelo particular. Precedente. O compromisso de ajustamento de conduta é um acordo semelhante ao instituto da conciliação e, como tal, depende da convergência de vontades entre as partes” (STJ, 4ª. Turma, REsp 596.764/MG, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, julgado em 17/05/2012, DJe 23/05/2012).

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