Para procuradores do Trabalho, MP 927/2020 submete o trabalhador à caridade empresarial

 ANPT manifesta repúdio também à possibilidade de inserção de nova medida voltada à redução de jornada e salário, sem a respectiva proteção à saúde do trabalhador

 

Em nota pública divulgada nesta segunda-feira (23) a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) expõe preocupação com a Medida Provisória n. 927, de 22 de março de 2020, que dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública. Segundo a entidade, o Governo adota postura radical, autorizando medidas de exceção à ordem jurídico-trabalhista “já tão fragilizada pelas reformas, que relegam à última ordem de importância a necessidade de sobrevivência do trabalhador brasileiro, projetando cenário de profunda miséria social”.

 

No documento, a ANPT afirma que a norma não oferece qualquer garantia mínima de emprego após a suspensão contratual  e ainda facilita ao empregador postergar a dispensa do empregado e o consequente pagamento de seus direitos rescisórios para o período posterior à crise de saúde pública, sem compartilhar com a sociedade qualquer responsabilidade ou risco pelo desenvolvimento da atividade econômica.  Além disso, a MP não prevê qualquer medida de proteção ao trabalhador informal, que, para permanecer em isolamento social, ficará sem meios de subsistência no período de crise.

Ainda na nota, a entidade ressalta em decorrência desse cenário de inconstitucionalidades que avilta o pacto social democrático brasileiro, a MP n. deverá ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade a ser ajuizada pela ANPT, a fim de que o Supremo Tribunal Federal possa remediar as sobreditas violações, restabelecendo a imperatividade da Constituição com a imposição de respeito aos direitos humanos prestigiados pela legislação nacional.

 

Confira abaixo a íntegra da nota pública

 

NOTA PÚBLICA

A CRISE DE SAÚDE PÚBLICA DECORRENTE DO CORONAVÍRUS E O ABANDONO DO TRABALHADOR BRASILEIRO PELA MP N. 927/2020

 

A Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho – ANPT, entidade representativa dos membros do Ministério Público do Trabalho de todo o Brasil, vem a público externar a preocupação da categoria com a Medida Provisória n. 927, de 22 de março de 2020, que dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública (DL n. 6/2020) e da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (covid-19), registrando a respeito o seguinte:

 

Em meio às crises política e econômica que levaram o Brasil a adotar a agenda de reformas trabalhistas extremamente restritivas e precarizadoras dos direitos sociais trabalhistas, preocupa profundamente a postura do Governo Federal diante da crise de saúde pública decorrente do coronavírus, relativamente à proteção dos trabalhadores.

 

Enquanto os países paradigmáticos do capitalismo contemporâneo, a exemplo dos Estados Unidos e países da Europa, enfrentam a mesma crise de saúde pública com medidas de renda mínima e garantia de emprego, para permitir que os trabalhadores façam a necessária quarentena com satisfação de suas necessidades básicas inadiáveis, contendo os efeitos da pandemia sobre a saúde pública e sobre a economia, o Governo brasileiro, por meio da MP n. 927/2020, adota postura radicalmente oposta, autorizando medidas de exceção à ordem jurídico-trabalhista já tão fragilizada pelas reformas, que relegam à última ordem de importância a necessidade de sobrevivência do trabalhador brasileiro, projetando cenário de profunda miséria social.

 

Sem embargo da possibilidade de implementação de teletrabalho nas atividades em que seja compatível, e de algumas medidas compensatórias da paralisação do trabalho em atividades não passíveis de prestação à distância, como férias coletivas, banco de horas e antecipação de feriados não religiosos, a MP n. 927/2020, com a redação em vigor no momento de publicação desta Nota, permite a suspensão contratual por até 4 (quatro) meses, mediante simples acordo escrito entre empregado e empregador, “para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional não presencial oferecido pelo empregador” (art. 18) sem concessão da bolsa-qualificação prevista no art. 476-A da CLT (§ 5º) e sem garantia de qualquer contraprestação pecuniária mínima para satisfação das necessidades materiais do trabalhador e de sua família.

 

Notícia veiculada nos meios de comunicação, nesta data, especulam a possível revogação desse dispositivo, pelo Presidente da República, com a correspondente inserção na MP n. 927/2020 de novo dispositivo que autorize a redução da jornada de trabalho com redução proporcional de salário em até 50% (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/governo-vai-editar-nova-mp-para-autorizar-corte-de-50-em-salario-e-jornada-de-trabalho.shtml). Tal medida igualmente não oferecerá proteção à saúde dos trabalhadores submetidos ao trabalho presencial, reduzindo seu poder aquisitivo sem contrapartida em proteção contra o contágio do coronavírus, no momento de maior carência e fragilidade social.

Analisamos a seguir a versão em vigor da Medida Provisória, que prevê a hipótese de suspensão contratual, até que sobrevenha a alteração noticiada pela imprensa.

 

No período de suspensão contratual sem recebimento de bolsa ou ajuda de custo, a legislação submete o trabalhador à caridade voluntarista empresarial, ao prever que “o empregador poderá conceder ao empregado ajuda compensatória mensal (...), com valor definido (...) via negociação individual” (§ 2º). Mais grave, a norma impõe a prevalência desse acordo individual sobre qualquer acordo ou instrumento coletivo (§ 1º, I e II), impedindo que a sobrevivência material do trabalhador no período de crise seja objeto de negociação coletiva, em postura diretamente violadora das Convenções n. 98 e 154 da Organização Internacional do Trabalho e das normas constitucionais protetivas do trabalho, especialmente aquelas que garantem o salário e o reconhecimento dos acordos e convenções coletivas de trabalho (CF/1988, art. 7º, IV e XXVI).

 

Com esse mecanismo, a legislação governamental não deixa ao trabalhador a opção viável pelo isolamento médico, tendo em vista a ausência de garantia de renda mínima para seu sustento e de sua família, no período. Pelo contrário, o submete à pressão empresarial pela suspensão contratual despida de garantia alimentar, a bem da empresa, na mera expectativa de manter o emprego após a crise.

 

Como a norma não oferece qualquer garantia mínima de emprego após a suspensão contratual (a exemplo da garantia prevista no § 5º do art. 476-A da CLT, expressamente afastada para o caso em apreço), a MP n. 927/2020 apenas facilita ao empregador postergar a dispensa do empregado e o consequente pagamento de seus direitos rescisórios para o período posterior à crise de saúde pública, sem compartilhar com a sociedade qualquer responsabilidade ou risco pelo desenvolvimento da atividade econômica.

 

No conjunto das garantias patronais que constituem a tônica da MP n. 927/2020, direcionadas a preservar a saúde econômica das empresas, ainda se destacam o adiamento do pagamento de 1/3 das férias legalmente devidas ao trabalhador para período posterior à concessão, impedindo que o trabalhador goze do direito adquirido para resguardar sua saúde e de sua família, com atendimento de suas necessidades materiais (art. 8º); o adiamento do recolhimento do FGTS (art. 20) com suspensão do prazo prescricional respectivo (art. 23); o uso do regime de teletrabalho sem controle de jornada e sem pagamento de horas extras (art. 4º, § 5º); a dispensa do cumprimento de medidas de saúde e segurança (arts. 15 a 17) e o afastamento da contaminação pelo coronavírus como doença ocupacional, salvo comprovação de nexo causal, independente das medidas de prevenção adotadas pelo empregador, dentre outras ações flexibilizadoras de proteção social.

 

Além disso, a norma não prevê qualquer medida de proteção ao trabalhador informal, que, para permanecer em isolamento social, ficará sem meios de subsistência no período de crise. Atualmente, 40,7% dos trabalhadores brasileiros ocupados, algo em torno de 38,3 milhões de trabalhadores, sobrevivem do trabalho informal, inclusive intermediados por plataformas digitais que, não raro, camuflam verdadeiras relações de emprego. Esses trabalhadores se encontram em estado de absoluto abandono estatal, no que diz respeito à proteção de sua saúde e manutenção de sua sobrevivência no período de quarentena.

 

Como se observa, por meio da MP n. 927/2020 Governo Federal impões os ônus econômicos da crise de saúde pública unicamente aos brasileiros e brasileiras que dependem do trabalho como único veículo de acesso aos meios materiais de sobrevivência, submetendo esse trabalhador ao abandono num momento de crise humanitária que desafia as sociedades democráticas ao exercício da solidariedade social, com imputação de responsabilidades a todos os agentes políticos, sociais e econômicos, na proporção de suas possibilidades.

 

Ao tempo em que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDES aprova a liberação de R$ 55 bilhões em medidas emergenciais de reforço para o caixa das empresas, com objetivo de mitigar os efeitos da pandemia no Brasil, valor que representa quase a totalidade dos desembolsos do banco no ano de 2019, a pretexto de preservar 2 milhões de empregos (https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/03/22/bndes-aprova-medidas-de-auxilio-de-r-55-bilhoes-contra-impacto-do-coronavirus.ghtml), a MP n. 927/2020, sem exigir dessas empresas qualquer contrapartida social respectiva, submete o trabalhador à caridade empresarial, impedindo, inclusive, que o seu sindicato possa em seu nome firmar acordos coletivos voltados à proteção do seu emprego. Com isso, a norma fomenta a concorrência individual pelo emprego pós-crise, ainda que despido de qualquer garantia, em detrimento dos laços de solidariedade social que devem prevalecer no paradigma do Estado Democrático de Direito adotado pela Constituição a República de 1988.

 

Em face desse cenário de inconstitucionalidades que avilta o pacto social democrático brasileiro, a MP n. 927/2020 deverá ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade a ser ajuizada pela ANPT, a fim de que o Supremo Tribunal Federal possa remediar as sobreditas violações, restabelecendo a imperatividade da Constituição com a imposição de respeito aos direitos humanos prestigiados pela legislação nacional.

 

Tendo em vista o exposto, a ANPT manifesta total repúdio ao conjunto das medidas previstas na MP n. 927/2020, inclusive à possibilidade de inserção de nova medida voltada à redução de jornada e salário, sem a respectiva proteção à saúde do trabalhador, pela forma antidemocrática com que a legislação superprotege o poder econômico em detrimento dos direitos humanos dos trabalhadores brasileiros, razão pela qual ora noticia que ingressará com ação direta de inconstitucionalidade em face das violações aos direitos fundamentais dos trabalhadores brasileiros, na linha de atuação que constitui missão institucional precípua dos Procuradores do Trabalho.

 

Brasília, 23 de março de 2020.

 

 

Ângelo Fabiano Farias da Costa

Presidente da ANPT

 

Helder Santos Amorim

Vice-Presidente da ANPT

 

 

 

 

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